Gratuidade final 3 SITE

Conquista foi o resultado da soma de lutas envolvendo estudantes, professores e funcionários e que durou vários anos

Nesta quinta-feira (21) os paranaenses têm uma data histórica a ser celebrada, que são os 30 anos da gratuidade nas universidades públicas do Estado. Universidades estas que foram criadas na época do regime militar, num contexto político voltado para a ampliação do ensino pago.

Por isso, a luta que culminou no fim da cobrança de mensalidades nestas instituições percorreu um longo caminho porque, para além da conquista da gratuidade, outras bandeiras eram empunhadas pelos agentes universitários e professores, como salários mais dignos e melhores condições de trabalho.

Ao mesmo tempo, é fato também que setores da classe média do País se movimentavam para pedir a expansão do ensino superior público e gratuito em todo o Brasil.

No dia 21 de dezembro de 1987, o então governador Álvaro Dias sancionou a lei estadual 8.675, prevendo a gratuidade. A regulamentação da lei, no entanto, ocorreu em 11 de janeiro de 1988, por meio do decreto 2.276.

O assunto, recorrente, virou tema de pesquisa por vários professores, entre eles Reginaldo Benedito Dias, do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá (UEM).

Num artigo escrito para ser um dos capítulos do livro "Paraná Insurgente", organizado por Joseli Mendonça e Jhonatan Souza, Dias sustenta que "a introdução da gratuidade ocorreu em fase avançada do processo de redemocratização do país e de democratização das universidades. Talvez não seja um fato suficientemente divulgado e sedimentado na memória coletiva que a Lei 8.675 traduziu uma negociação consignada no desfecho da greve sindical de 1987. Mais amplamente, resultou do acúmulo das mobilizações em favor da “universidade pública, democrática e gratuita” que grassaram, em anos anteriores, no seio das instituições de ensino superior, envolvendo docentes, estudantes e servidores técnicos".

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Por isso, o professor lembra que o fim da cobrança foi uma conquista da luta social. Dias afirmar não saber qual a memória que cada instituição beneficiada vai guardar do trigésimo aniversário desta conquista no ensino na rede estadual de ensino superior, "mas trata-se, potencialmente, de uma densa “data convocatória”. Lembrando a ofensiva politicamente conservadora do momento, interessada em subtrair ou limitar os direitos sociais, ele justificar ter escrito o artigo visando abordar o processo de conquista da gratuidade do ensino e demonstrar sua relação com as lutas promovidas pela comunidade e com o processo de democratização das universidades estaduais do Paraná. 

Ao criar as universidades estaduais sediadas em Londrina, Maringá e em Ponta Grossa, em 1969, o governo do Paraná procurava inserir a medida num projeto de “desenvolvimento integrado”, sendo necessário, para isso, aporte de investimentos em infraestrutura, sobretudo na expansão da oferta de energia elétrica e da malha rodoviária. 

Para as universidades estaduais paranaenses que acabam de ser criadas, como “fundações de direito público”, "uma consequência foi a vigência do ensino pago como forma de completar seu financiamento, conforme estabelecia o quinto artigo da Lei 6.034/6". Outra consequência era a vigência de um sistema de poder autoritário, em que eram escassos os espaços de participação democrática.

"As representações internas (reitor, chefes de departamentos etc.) eram constituídas por meio de listas triplas e sêxtuplas, sem participação decisiva das comunidades. Além disso, não se pode olvidar que o sistema nascia sob o Ato Institucional nº 5, de dezembro de 1968, e de sua tradução para o circuito universitário, o Decreto Lei 477, de fevereiro de 1969. Esses instrumentos draconianos limitavam e puniam as possibilidades de contestação ao modelo implantado", escreve. 

De acordo com Dias, mesmo em um contexto tão repressivo e inibidor, não é difícil mapear, nesses primeiros anos da década de 1970, manifestações de resistência no interior das instituições, orientadas pela bandeira da universidade pública, democrática e gratuita. 

Ainda segundo ele,"os ventos da mudança foram canalizados pelo aperfeiçoamento da organização representativa da comunidade universitária. Em 1978, foi criada a Associação dos Docentes da UEM (Aduem); em 1980, houve a fundação do Diretório Central dos Estudantes (DCE) e da Associação dos Funcionários da UEM (Afuem). Em 1985, superando uma interdição histórica que impedia o servidor público de constituir representação sindical, houve a formação do Sindicato dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino de Maringá (Sinteemar)". 

Além disso, outros fatores contribuíram para elevar o clima de insatisfação com a circunstância da época, como o acúmulo de campanhas estudantis contra os aumentos e em favor da gratuidade, no final dos anos 70; a reinvidicação, em 1978, pelos diretórios acadêmicos, do congelamento de todas as taxas e das mensalidades; e no início de 1980, o boicote ao recém-fundado Restaurante Universitário (RU) como forma de combater os aumentos. 

Com o passar dos anos vários embates foram ocorrendo e em meados de 1984 irrompeu uma nova conjuntura de enfrentamentos de alta intensidade, norteados por uma pauta que reivindicava o congelamento dos preços das mensalidades, RU, fotocópias, entre outros. Em 14 de agosto do mesmo ano, o processo culminou na ocupação da Reitoria, gerando uma paralisação de forte impacto na instituição. 

Dias diz que 1984 foi um ano de agitação estudantil em todo o Paraná. No dia 19 de agosto, no final da semana em que acontecia o movimento de ocupação da reitoria da UEM, estava programado o lançamento da campanha “Gratuidade-Já”, coordenada pela União Paranaense dos Estudantes (UPE).

Nesse contexto, embora a mobilização da UEM ter sido impulsionada pelo impasse nas negociações relativas ao congelamento dos valores mencionados foi a expectativa de que era possível avançar para a conquista da bandeira principal, a gratuidade do ensino. 

O movimento dos estudantes da UEM foi encerrado com a negociação de um subsídio que garantiu o congelamento temporário do preço das refeições. Apesar da volta à normalidade administrativa após o seu encerramento da ocupação, o movimento, "ao acirrar e desnudar as contradições internas, fincou fendas profundas nas autoritárias relações de poder da universidade".

Na UEM, as paralisações decorrentes da luta por melhores salários e condições de trabalho voltariam a ocorrer em 1984, após o encerramento do movimento de ocupação da reitoria promovido pelos estudantes.

Apesar de alguns contratempos, como o fato de o governador não ter acatado a lista sêxtupla em ordem alfabética, na eleição para reitor, em 1986, e ter indicado o segundo colocado, havia uma avaliação de que o processo estava avançando. 

Em 1987, estimulado pelas mudanças ocorridas no comando da universidade, traduzidas nas eleições diretas para reitor, o DCE fez uma campanha pela gratuidade do ensino e encaminhou um abaixo-assinado reivindicando o congelamento das mensalidades, dos preços cobrados no RU e de todas as taxas. 

A gratuidade do ensino seria negociada ainda naquele ano com o comando de greve sindical. Na UEM, a paralisação teve início no final de março de 1987, reivindicando 106,7% de reajuste nos salários. Onze dias depois foi promovido um acordo com a administração da universidade, pactuando um reajuste de 70,16%, com aplicação retroativa ao mês de março. Como o governo recusou-se a repassar o valor acordado e tentou retirar, por meio de decreto, a autonomia financeira das universidades, a greve foi retomada em maio.

"Em 26 de junho, a assembleia de professores e funcionários aprovou um acordo, negociado entre sua representação sindical e o governo do estado, suspendendo a greve. A questão salarial ficou pendente, a ser conduzida por outras vias. Em dezembro daquele ano, foi aprovada a Lei Estadual 8.675. A grande conquista foi a implantação, a partir de 1988, da gratuidade do ensino", afirma. 

Dias conclui que "a implantação da gratuidade do ensino no sistema estadual de instituições superiores do Paraná foi, efetivamente, uma conquista da comunidade, sedimentada em contínuas jornadas de reivindicação. Em coerência com o fato de que os passos mais importantes foram realizados por meio da luta social, é significativo constatar que a grande conquista tenha sido consolidada no desfecho de uma greve sindical". 

Para ele, "a introdução da gratuidade do ensino não foi um mero marco administrativo, relativo à modificação das formas de financiamento das instituições. Do período da criação das universidades estaduais até 1987, o ensino pago restringia sua dimensão pública. Em reverso, a gratuidade significou a ampliação de sua natureza pública e de seu caráter democrático. Tal transformação tornou-se um valor para as instituições, espécie de bússola para o conjunto de suas políticas. Por isso, salvo melhor juízo, trata-se de uma refundação".

Dias também é autor do livro "Uma Universidade de Ponta Cabeça", onde relata, em detalhes, todo o processo sobre a conquista da gratuidade. Ele foi estudante do curso de História da Universidade e membro da Coordenação Geral do DCE em 1985, além de ter participado diretamente, de 1983 a meados de 1987, dos movimentos que culminaram no fim da cobrança de mensalidades no ensino superior público.

Além de Dias, outro pesquisador sobre o assunto, professor Valério Arcary, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), ao fazer palestra na UEM, em 2013, para os calouros da época, lembrou que o ensino superior no Brasil foi um importante fator de mobilidade social no Brasil entre o final dos anos 1960 e o final da década de 1980.

Segundo ele, as movimentações ocorridas na UEM em prol da gratuidade do ensino ocorreram em consonância com uma tendência nacional da época. “Embora seja correto afirmar o papel do movimento estudantil, seria injusto esquecer outros protagonistas do processo da luta pela expansão do ensino superior público e gratuito no Brasil. Era uma demanda, em primeiro lugar, de todos os setores médios, das classes médias, dos setores mais elevados da classe operária".

"Tinham que negociar o parcelamento das suas dívidas", diz Jairo de Carvalho, ex-presidente do DCE da UEM

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Hoje servidor da Universidade, Jairo de Carvalho relata a seguir como era a época em que os acadêmicos, incluindo ele, tinham que pagar para estudar na UEM. 

"Estudei na UEM entre 1981 e 1986, no tempo em que os estudantes tinham que pagar o carnê equivalente ao semestre no qual estavam matriculados, além das outras taxas. Nem sempre conseguiam. Quando isso ocorria, tinham que negociar o parcelamento das suas dívidas com o setor de finanças da instituição ou abandonar, provisória ou definitivamente, o seu curso. Houve semestre em que um número próximo a quinhentos não tinham saudado seus débitos. Também era significativo o número de estudantes que dependiam das bolsas de estudos do governo federal repassadas por deputados, que fidelizavam alguns eleitores entre as pessoas que recebiam as bolsas e ficavam assim devendo favores aos políticos. Até a década de oitenta, estudar nas instituições de ensino superior do Paraná era um drama para os alunos pobres. Além da UEM, a UEL, a UEPG e dez outras faculdades isoladas tinham a mesma situação. Essa dor de cabeça dos estudantes e de seus s familiares não chega a ser um grande problema para o governo do estado e poderia ser resolvido facilmente. O peso do total arrecadado com o pagamento das anuidades equivalia a 5% do orçamento da universidade. Torná-la gratuita não significava um peso insustentável para o orçamento estadual. Outros estados já mantinham boas universidades gratuitas. Se USP, Unicamp, Unesp, UERJ, eram gratuitas a UEM também poderia ser.

A gratuidade era a bandeira do movimento estudantil. A luta para conquistá-la também era dirigida contra o governo ditatorial que não permitia a livre organização dos estudantes e de suas entidades representativas. O DCE da UEM foi criado em 1980, na vanguarda da redemocratização do país, nasceu organizando os estudantes contra os aumentos e reajustes das mensalidades. Estivemos nessas lutas como estudantes e chegamos à direção do Diretório Central dos Estudantes no final de 1982. Era a gestão “Outras Palavras”, liderada pelo companheiro Ademir Demarchi, que logo de início organizou a campanha de boicote às anuidades com o recolhimento dos carnês. Tendo vencido as eleições seguintes para a entidade, depois de um ano de lutas intensas, a gestão “Próximos Passos”, na qual eu era o presidente, intensificou ainda mais as atividades pela gratuidade do ensino e contra o reajuste naCodes taxas. Em 1984, a dificuldade em negociar o congelamento do preço das refeições do Restaurante Universitário elevou o clima, culminando com a ocupação da reitoria e outras dependências da universidade pelos estudantes por vários dias, só retornando às aulas depois que o congelamento foi conquistado, com a ajuda do prefeito municipal, Said Ferreira.

Importante lembrar também que a conquista de eleição direta para reitor foi determinante para a que a UEM e as universidades estaduais paranaenses passassem a ser gratuitas a partir de 1988. Na primeira gestão na reitoria de administradores escolhidos pelo voto direto da comunidade universitária, o professor Fernando Ponte, que foi líder do movimento de professores da UEM, diferentemente do que os reitores anteriores faziam, não repassou o altíssimo índice da inflação do semestre para o valor das anuidades pagas pelos alunos e tomou a corajosa atitude de acatar a reivindicação estudantil de congelar esse valor. Isso foi o mais importante passo para a gratuidade do ensino na UEM, pois em uma época em que a inflação passava de 60% ao mês, em muito pouco tempo o valor não reajustado das mensalidades logo chegaria a cifras desprezíveis, quase zero. Diante do fato, o governador, Álvaro Dias, na época, aceitou o que já estava praticamente consumado na UEM e decretou oficialmente o fim das cobranças pelos estudos na UEM. Desde então as universidades estaduais do Paraná passaram a ser gratuitas".

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Aluna do 3º ano do curso de Comunicação e Multimeios, Giulliana Dias admite que não teria as mesmas condições de estudar na UEM caso a cobrança de mensalidades ainda persistisse. "Eu teria que trabalhar para poder pagar", diz a estudante.

Pelos cálculos dela, ao menos 30% dos colegas de sala também teriam dificuldades para fazer o curso se a gratuidade não tivesse sido implementada. O problema, aponta a acadêmica, é que, pelo fato de a graduação ser à tarde, dificilmente algum aluno conseguiria emprego de manhã ou à noite, o que implicaria num empecilho ainda maior para freqüentar as aulas de Comunicação e Multimeios.

Depoimentos

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Mauro Baesso (reitor):

"É uma conquista dos paranaenses de ter garantido uma universidade pública, gratuita e de qualidade. Precisamos fazer o esforço para manter esta condição, porque é uma universidade que é protagonista na geração de conhecimento e na formação de recursos humanos de qualidade e que tem modelo de funcionamento semelhante ao que acontece nos países onde as universidades são de excelência. Por isso que a UEM é considerada hoje uma universidade de excelência".

Julio Damasceno (vice-reitor):

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'"As universidades têm que ter uma autonomia orçamentária e financeira sem que dependam da arrecadação via cobrança de mensalidades. Isto é um fato fundamental para garantir à universidade pública condições plenas de desempenhar seu papel na formação de pessoas, de produção de conhecimento e de prestação de serviços à sociedade, com excelência e independência, desvinculada de qualquer estratégia arrecadatória. 

Na UEM, é importante ressaltar, existem estudantes que vêm de famílias que tem grandes dificuldades de mantê-los na Universidades, mesmo sendo gratuita, sobretudo para aqueles que freqüentam cursos de período integral. Devemos ressaltar também que as famílias já pagam impostos.

Passamos por um momento delicado, pois há alguns anos a gratuidade vem sofrendo ataques, com o argumento de quem acessa o ensino superior público conquista vantagens no campo profissional que lhe permite ter salários mais elevados. 

Temos políticas contraditórias no País. De um lado, discussões sobre o fim da gratuidade no ensino superior público. Por outro lado, o argumento de que o Estado deve intensificar suas políticas de financiamento dos alunos que estudam nas instituições privadas. 

O Brasil precisa de jovens, de pessoas que freqüentaram as universidades. Isso faz com que haja uma atratividade para o interior do Paraná, para que empresas se instalem na região, sobretudo as de alta tecnologia'".