Entrevista com Daniele Almeida Duarte

Por Gabriela Pontes

Em época de final de ano e véspera das férias coletivas, a entrevista desta edição aborda a função do recesso para a renovação das energias para 2019. Convidamos a professora Daniele Almeida Duarte, docente no curso de Psicologia e pesquisadora em Saúde Coletiva, para explanar sobre o assunto. Aproveite as dicas da especialista e desfrute suas férias:

 

Existem hábitos e atividades mais adequados para efetivamente descansar e relaxar durante o período de recesso? Se sim, quais são eles?

Após um ano atribulado, sobrecarregado não apenas nas atividades rotineiras de um/a servidor/a público que acumula tarefas, estamos também exaustos pelo cenário social, político e econômico que tomou conta do nosso país. As preocupações perante um presente e um futuro, que dizem respeito não somente à carreira, mas também obtermos condições para realizar as atividades com qualidade e alegria, ultrapassam nossa ação individual. Requer uma atenção dos agentes públicos e da sociedade para que haja a manutenção e desenvolvimento da universidade pública, gratuita, de qualidade e humana, como por exemplo, além de custeio suficiente, a reposição do assustador déficit que temos em nosso quadro de pessoal. Requer também recursos materiais e condições estruturais adequadas para atender as demandas incessantes que nos chega dia a dia. Requer um coletivo e um espaço de convivência e trabalho respeitoso, colaborativo e solidário. Ou seja, por estes motivos, entre outros que cada um pode acrescentar, expressamos cansaço e tensão constantes para dar conta da rotina nesta Instituição.

["...o direito às férias, o período de repouso e lazer são fundamentais para cuidarmos da saúde."]

Tendo isso em vista, o direito às férias, o período de repouso e lazer são fundamentais para cuidarmos da saúde. Os primeiros dias do recesso são uma espécie de “desaceleração” a se fazer. Um desligamento paulatino que cada um/a vai conseguindo aos poucos, encontrando suas estratégias e tempos. Convivemos tão intensamente com o trabalho que a jornada diária de oito horas não se desliga da noite para o dia. Deste modo, é fundamental estabelecer alguns limites na rotina doméstica e familiar para não continuar trabalhando a todo vapor em casa e nos momentos de lazer. A saúde do trabalhador/a, em especial a dimensão da saúde mental, necessitam de outras vivências que não seja o trabalho.

O período de recesso é uma ótima oportunidade para retomar e criar vínculos extra-trabalho. Fazer atividades que não estávamos habituados, bem como retomá-las. Há os hobbies a pôr em práticas, nossas afinidades e interesses que podem ser realizados. Os talentos esquecidos e aqueles ainda não descobertos. Um momento propício para reencontrar nós mesmos e outros vínculos.

Experimentar uma boa caminhada ou outros atividades físicas que tragam prazer e conforto, exercitar atividades manuais e artísticas, estar com as crianças de maneira mais intensa e fazermos juntos nossa “colônia de férias”, ler, tocar instrumentos, participar de atividades e ações sociais que geram alegria e reconhecimento. Momento também de se cuidar e cuidar melhor dos nossos familiares e amigos. Enfim, o período de recesso é uma ótima oportunidade de lembrarmos que a vida é muito mais que o trabalho. O que faz muita gente ter dificuldades de aproveitar este tempo para descansar e relaxar.

["... o período de recesso é uma ótima oportunidade de lembrarmos que a vida é muito mais que o trabalho."]

 

Como aproveitar as férias coletivas para recarregar as baterias para o ano de 2019?

Os vínculos “além trabalho” são fundamentais para deleitar-se nas férias. Contudo, a dificuldade está por vivermos uma rotina diária de trabalho, que sabemos ultrapassar a jornada de oito horas. Afinal, estamos planejando de modo incessante atividades do trabalho. Pensando, elaborando e buscando resolver as demandas e desafios diários em outros espaços, que se estendem para fora das paredes das salas de aula, dos laboratórios e escritórios. Chegamos até mesmo a sonhar a noite com conteúdos do trabalho, tamanhas exigências  que não são apenas cognitivas, mas afetivas e psicossociais. O trabalho mudou em suas exigências. As metas são ascendentes e na administração pública isso também tem se feito presente. Logo, a prontidão, vigilância e atenção dos/as trabalhadores/as são constantes, especialmente pelos motivos já mencionados anteriormente. O que acontece nesse cenário? As linhas entre dentro e fora do trabalho, esfera laboral e doméstica/privada são desfeitas. Misturam-se. A tecnologia também tem parte especial nisso, figurando entre as novas relações, conteúdos e vivências do/no trabalho. A instantaneidade, velocidade e intensidade do constante afazer foi aprofundado pelos novos meios de comunicação. Para ilustrar isso, como estamos assoberbados, a ponto de nem sabermos mais o que fazer, lembremo-nos do personagem Coelho Branco, de Lewis Carroll, em sua belíssima obra “Alice no País das Maravilhas”. O personagem dizia de modo atordoado e desesperado: "Ai! Aii! Ai!  Chegarei atrasado demais!". Em seguida tira o seu relógio do bolso. Nós tiramos o celular! A vivência do tempo, na atualidade, comprimiu-se a ponto das pessoas dizerem que o dia precisaria se estender além das 24h. Caso se estendesse, não resolveríamos o problema da sobrecarga, pois estenderíamos ainda mais nossos afazeres, tornando a vivência do tempo sempre insuficiente. E precisamos nos reaver nesse tempo! Tomar fôlego! Reabastecer de alegria, afeto e outras vivências. A família, os amigos ou mesmo os momentos de solidão renovadora, para se aquietar e, posteriormente, se reencontrar com a vida, são fundamentais.

 

Quando as atividades reiniciarem em 2019, como lidar com o possível estresse decorrente da rotina de trabalho?

Há uma dimensão de manejo do estresse que ultrapassa o foro íntimo e individual. Reconhecer as fontes de estresse, os estímulos adversos que estamos expostos e seus efeitos sobre nós é um passo fundamental. Nem todo estresse impele ao sofrimento e adoecimento, quando há possibilidades de lidar com este, com os focos estressores, não deixando esta pessoa exposta de modo incessante a um estímulo aversivo, sem ter condições de intervir neste. Aí estamos na dimensão social do estresse. Poder identificá-lo, situá-lo em um âmbito local e conjuntural e poder encontrar, conjuntamente, modos de atenuá-lo ou modificá-lo é um caminho inicial. No âmbito do trabalho seria reconhecer os riscos presentes ali e construir modos de trabalhar geradores de saúde. Nessa perspectiva coletiva de identificar os problemas, reconhecer seus efeitos e buscar vias solucionadoras de curto, médio e longo prazo, todos ganham em qualidade de vida e trabalho, em relações interpessoais, em produtividade, em saúde e dignidade.

["Reconhecer as fontes de estresse, os estímulos adversos que estamos expostos e seus efeitos sobre nós é um passo fundamental."]

 

Como o descanso e o bom aproveitamento das férias colabora para a manutenção da saúde mental?

Os momentos produtores de vida, de sentido da existência, de bem-estar e alegria precisam ser construídos no dia a dia. Em nossas atividades, em nossas relações, em nossos espaços de convivência. Onde passamos a vida. Buscar a saúde mental, que é justamente uma busca, uma luta, um movimento incessante não deve ser pensado apenas no âmbito pessoal e interno. Devemos considerar o externo, o social, onde se fazem as exigências da vida, como o lugar do trabalho. Deve ser também ali, pois em torno dessa atividade nossa vida transcorre. Faça as contas da média de horas que trabalhamos diariamente e multiplique por um número de anos (expectativa de vida). Quanto da nossa vida está nessa atividade? Cada vez mais estamos vivendo um momento que a gente “vive para trabalhar”. Quero chamar a atenção para isso em três aspectos. O trabalho possui papel fundante no processo saúde-doença (adoecemos pelo trabalho, mas também no trabalho obtemos saúde); na constituição da identidade (como nos reconhecemos e como somos reconhecidos pelos outros); e fonte de subsistência (força de trabalho vendida para sobreviver e obter recursos materiais e imateriais).

O trabalho está repleto não somente de força muscular dispendida por um corpo em ação, do vigor cognitivo utilizado na realização das atividades, mas profundamente marcado  pelos afetos, os sentimentos e as emoções. Deste modo, ao pensar em descansar e aproveitar as férias, acaba sendo atravessado por estas vivências do trabalho que se estendem para dentro de casa. A refeição rápida feita no dia a dia. O atropelo das exigências e preocupações a serem realizadas. A aceleração das falas, dos diálogos muito abreviados dentro de casa com cônjuges e filhos/as. O uso dos celulares e computadores que se estendem até para uma beira de praia, para um momento de repouso. Desaprendemos o exercício da convivência comunitária, familiar e amorosa. O que geralmente acontece é o tempo de “férias” e “recesso”, para muitos trabalhadores/as, é continuar a trabalhar. Pôr em dia o que não se fez. E a vida vai passando. Vamos envelhecendo, adoecendo e esquecendo de viver dentro e, especialmente, fora do trabalho outras possibilidades de vida.

Penso que seria um grande desafio, para muitos de nós, fazermos coisas simples, corriqueiras, onde estão as preciosidades da vida. Uma refeição mais vagarosa e compartilhada. Um passeio em um parque. Uma conversa tranquila, olho a olho, sem celular! A vida está nesse âmbito ordinário onde há o aroma do café coando. De uma brisa no rosto. De uma escuta amorosa do outro. De poder desabafar e confiar a alguém parte da nossa vida.

Não há como não lembrar da obra prima do cineasta alemão Win Wenders, em Asas do Desejo, que busca retratar essa dimensão humana da existência, que colore a vida. Nesses gestos simples e com o outro, além trabalho, encontramos momentos para nos reabastecer e continuar a luta diária. A labuta após férias.

["Cuidar de si requer, de modo indispensável, cuidar do outro, do nosso colega de trabalho, da nossa Instituição."]

 

E, para finalizar, quero trazer uma luta a ser coletivizada nos nossos espaços de vida, ao retomarmos o ano de 2019. Uma busca pela saúde que se constrói tanto nos espaços coletivos, participativos e representativos (sindicatos dos trabalhadores, associações, conselhos e fóruns diversos), quanto no local onde retornaremos ao trabalho. Cuidar de si requer, de modo indispensável, cuidar do outro, do nosso colega de trabalho, da nossa Instituição. Poder conjuntamente reconstruir, na esfera local e conjuntural, o orgulho de ser servidor/a pública. De manter e ampliar os direitos constitucionais e do trabalho.

Estamos falando de um local de trabalho onde todos/as, em diferentes e importantes funções, sem diminuir o valor de nenhuma, atuam com políticas públicas de educação, que são os ingredientes para transformação e esperança de uma sociedade melhor. Vamos juntos, em 2019, cuidarmos do nosso cotidiano laboral, das relações diárias, aprendermos a trabalhar de modo mais compartilhado, solidário e respeitoso para lutarmos juntos por um espaço de vida e realização, que é e deve ser o trabalho. Cuidar dele e continuar a cuidar, também, da educação emancipadora e transformadora em nosso Paraná e no Brasil.