A favor de moradia, contra aumento de preços, pelo fim da violência, pela construção da passarela no bairro. Há mais gente unida, articulada e reclamante. A insatisfação, diz a cientista política, Carla Almeida, é consequência de uma democracia que não escuta o trabalhador.
Carla, professora da Universidade Estadual de Maringá (UEM), é estudiosa dos movimentos sociais e afirma que o radicalismo – e não a violência – é a única forma de a minoria ser ouvida. “Isso não se faz pedindo licença; isso se faz se impondo porque a sociedade não abre a porta e diz: ‘Sente-se e vamos conversar’. Não tem outra forma dos grupos oprimidos se colocarem.”
Douglas Marçal
Segundo ela, que é doutora em Ciências Sociais, os gays conseguiram construir o movimento social mais marcante da década, mas também encontraram pelo caminho muros difíceis de transpor, como o construído por grupos religiosos. “Eles têm sido o maior obstáculo para as discussões das demandas LGBT (no País)”.
Os recentes conflitos entre policiais e manifestantes contra aumento na tarifa de ônibus em São Paulo mostram que os protestos não podem ser confundidos com atos de vandalismo.
“É uma democracia pobre e limitada aquela que não enxerga o protesto
como uma ação legítima. Quanto mais amadurecermos essa ideia, menos
vandalismo teremos porque menos o policial vai até lá achando que vai
bater em bandido.” Leia a seguir os principais trechos da entrevista:
O DIÁRIO - Foram
vários protestos em curto espaço de tempo, os dos supersalários dos
vereadores, do Contorno Norte, das casas geminadas. Por que as pessoas
estão reclamando mais?
CARLA ALMEIDA - O protesto é uma ação legítima da democracia. O que acontece hoje em dia é que há grande insatisfação com a democracia representativa. Há grande insatisfação frente às poucas possibilidades que a democracia representativa tem oferecido para encaminhar as demandas de determinados grupos da sociedade.
Então, esses grupos se organizam e fazem protestos para que suas demandas sejam ouvidas. O protesto é uma forma de se fazer ouvir e ele fica mais volumoso em momentos em que a democracia representativa é falha.
Se a democracia não tem sido muito eficaz no encaminhamento de
demandas, é importante que os movimentos surjam para colocar questões
que não estão sendo ouvidas. Esse volume de protestos em várias regiões
do mundo tem a ver com a necessidade de repensar os instrumentos da
democracia representativa.
Quais as dificuldades impostas ao movimento gay?
O maior desafio para as demandas do movimento LGBT está na superação
por parte da sociedade da ideia de que as relações heterossexuais são
naturais e as homossexuais são pervertidas e anormais. O desafio está,
portanto, no terreno da cultura, de transformação de valores.
Na busca por essas demandas, eles agem com radicalismo?
É compreensível que o movimento apareça porque se não for dessa forma, não dá para pedir licença para entrar. Os grupos oprimidos se organizam em movimentos e eu considero que o LGBT conseguiu uma importante vitória nos últimos tempos, que foi ter conseguido colocar na agenda pública o debate das suas demandas.
Isso não se faz pedindo licença; isso se faz se impondo porque a
sociedade não abre a porta e diz: ‘Sente-se e vamos conversar’. Não tem
outra forma dos grupos oprimidos se colocarem. Não estou defendendo
violência, só dizendo que faz parte da democracia a contundência,
principalmente no momento inicial, que tem que quebrar barreiras para
se colocar.
Outros movimentos também agiram assim?
Os movimentos negro, indígenas, de mulheres. Até hoje o movimento
feminista é acusado de ser radical. Não vejo como os oprimidos possam
fazer de outra forma em uma sociedade que hierarquiza. O movimento
interpela a sociedade e a obriga a tomar conhecimento das demandas, o
que não significa aceitá-las.
As políticas públicas de direitos dos gays estão em sintonia com o que eles pedem?
As questões e demandas do movimento estão em debate, mas ainda é distante dizer que elas foram atendidas. Tivemos avanços nos últimos tempos. Em 2003, foi criado o programa Brasil sem Homofobia e a partir dele aconteceram conferências para discutir a temática.
Teve o lançamento de dois planos nacionais de políticas públicas e a criação do Conselho Nacional LGBT, em 2010. Essa interpelação já criou espaços institucionais nos quais as demandas podem ser discutidas.
É uma vitória fundamental, mas não significa que essas demandas já foram implementadas. A união civil entre casais do mesmo sexo, por exemplo, não está reconhecida no Congresso.
Existe uma decisão do Supremo, mas que ainda não passou pelo
Congresso, que é o órgão que formula as leis. Enquanto isso não é
debatido no Congresso, fica uma lacuna para todos os outros direitos de
uma união civil.
O movimento LGBT tem sido o mais marcante da década?
Os movimentos feminista e LGBT ganharam visibilidade muito grande. As tecnologias de comunicação também disponibilizam recursos de atuação política inegáveis. Uma aluna estudou a utilização da internet pelo movimento LGBT e concluiu que, particularmente, para esse movimento a internet é muito importante.
Pela internet, a pessoa pode entrar em contato com o movimento,
resguardando o anonimato. A internet diminui o custo da participação
em termos de tempo e de economia. Do mesmo jeito que a internet
diminuiu os custos da participação do movimento LGBT ela também reduz
os custos da participação dos grupos que são contrários.
Na relação entre religiosos e movimento gay, o radicalismo está em ambos os lados?
É inegável que setores de várias religiões se organizaram para fazer frente ao movimento LGBT. Tanto no Congresso quanto na sociedade existem movimentos convencidos de que a agenda dos direitos LGBT não é boa para a sociedade.
Apesar disso há, no interior das diferentes religiões, grupos minoritários que tentam colocar o assunto por outra perspectiva, mas, de forma hegemônica, os grupos religiosos têm sido o maior obstáculo para as discussões das demandas LGBT.
Na virada de 2011 para 2012, aplicamos um survey em Maringá que
procurou entender os valores nutridos pelos maringaenses. Fizemos
algumas perguntas referentes às demandas LGBT e as alunas que
trabalharam com os dados constataram que, em Maringá, quem tende
pertencer a grupos religiosos também tende a ser mais resistente ao
reconhecimento das demandas LGBTs.
Houve embate parecido entre religião e movimentos sociais?
As demandas de feministas também tiveram embate muito sério com os valores religiosos. A grande bandeira do movimento feminista é que o corpo pertence à mulher e ela deve ter a primazia de decidir o que fazer com ele.
É uma demanda que enfrenta muita resistência entre os valores religiosos. Ao mesmo tempo, temos alguns movimentos sociais importantes que tiveram apoio da igreja, como o MST.
A igreja também tem participação importante, por meio das pastorais,
no movimento de moradias. E todas têm peso muito grande no
associativismo voltado à assistência social. É importante reconhecer
isso também.
O que dizer dos protestos violentos em São Paulo por causa da tarifa de ônibus?
O movimento está dizendo que não deliberou pela depredação. Alguns indivíduos acabaram fazendo isso e devem ser punidos. O protesto é uma ação legítima da democracia, o que não significa confundí-lo com vandalismo, mas o problema é que geralmente as pessoas confundem. Pessoas nas ruas fazendo protestos geralmente são consideradas bandidas e isso cria um clima que favorece a ação violenta do policial.
Para o movimento, não é interessante ter essas ações. É ingenuidade achar que o movimento organiza isso. Acho que a gente deve retirar o protesto desse registro de vandalismo, porque tudo acaba virando vandalismo, independentemente se o sujeito está manifestando com uma faixa em uma ação legítima ou se está depredando um ônibus.
Tudo vira um mesmo bolo por parte da opinião pública, da imprensa, do Estado. É uma democracia pobre e limitada aquela que não enxerga o protesto como uma ação legítima.
Quanto mais a gente amadurecer essa ideia, menos vandalismo a gente vai ter porque menos o policial vai até lá achando que vai bater em bandido. A discussão ganha um estatuto político, mais adequado e melhor para todo mundo.