Há uma página no Facebook em que sujeitos sustentam veementemente a tese de que a Terra é plana. Em Santa Catarina, há o caso apavorante da professora que recebeu dos alunos água da privada misturada com comprimidos. Pedreiros martelam paredes e arrebentam o chão, incansavelmente, desafinando furadoras numa caótica sinfonia orquestrada no meio da cozinha. Há uma vizinha que morreu na última segunda-feira. Diariamente, investindo no som altissonante, há centenas de motoristas maringaenses que cruzam a Brasil com a Duque de Caxias, revelando versos deploráveis de funks pornográficos. Os assaltos no Rio de Janeiro e a consequente banalização da violência. Há uma ex-aluna que, recentemente, postou nas plataformas sociais uma foto abraçando, feliz da vida, Jair Bolsonaro. Todos essas coisas acabam perturbando, de alguma forma, a alma do psicanalista Raymundo Lima, paulista radicado em Maringá e professor da UEM há 23 anos.

Em sua sala na sede da Unati, departamento da universidade voltado à terceira idade, Raymundo se incomoda com outro detalhe: o vidro, que dá para a frente do departamento, onde se vê alunos apressados e professores carregando pilhas de papéis, pode despencar a qualquer momento. "Vamos sentar nessa mesa aqui", ele diz, "já solicitei há um bom tempo a mudança desse vidro, que pode cair na cabeça de alguém, mas estão demorando demais para trocá-lo", lamenta.

Às duas da tarde de uma quarta-feira, o psicanalista toma o lugar do paciente e, sentado, passa a relatar detalhadamente suas histórias. Ele não estaria agora, aos 60 anos, numa sala com ar-condicionado na UEM, se não tivesse a mãe que teve. Filho de um policial federal, que chegou a trabalhar na segurança pessoal do ex-presidente Epitácio Pessoa, e de uma dona de casa "de personalidade difícil", Raymundo nunca se deu bem com a mãe, uma ruiva de 1,60 metro que abandonou a família quando ele tinha apenas 9 anos.

O casal só reataria duas décadas mais tarde, e a mãe cuidaria dos detalhes do velório do esposo em Itaguaí – local onde hoje ela também está enterrada. "Itaguaí é aquela cidade do 'Alienista', do Machado de Assis. O inesperado sempre acontece naquela cidade", diz, rindo.

 

O pai queria que Raymundo investisse na carreira de policial; a mãe, em algo relacionado à área da medicina. "Minha convivência com ela nunca foi boa. Mas, com certeza, esse abandono dela me influenciou a seguir a Psicologia."

Precoce, Raymundo começou a lecionar aos 27 anos quando cursava uma disciplina do Mestrado e, concomitantemente, concluía o 4º ano da graduação. Doutor em Educação pela USP, ele integra o departamento Fundamentos da Educação, que gerencia o curso de Pedagogia nas versões a distância e presencial, além de coordenar a Unati há um ano.

Com a professora maringaense Ivana Veraldo, organizou o livro "Tensões na Escola", reunindo artigos sobre indisciplina e violência em sala de aula, um tema que o revolta e o interessa com a mesma intensidade.

 

"Indisciplina, nós sempre tivemos nas escolas. O que vem aumentando de uma forma assustadora é a violência. Sem falar em outros problemas éticos. Você sabia que há alunos que gravam o que o professor comenta em sala de aula e depois, com um editor de som, modificam o que foi dito e divulgam na internet? Isso é extremamente perigoso", diz. "Sinceramente, se eu estivesse começando hoje a carreira, não sei dizer se eu teria vontade de lecionar."

O que ele sabe, porém, é que pode ser considerado um homem feliz. "Felicidade é uma coisa complicada. Tenho momentos de felicidade, mas também tenho momentos de angústia, melancolia e tristeza. Minha felicidade está no trabalho, porque faço o que gosto, e na minha rotina em casa, porque tenho uma esposa e dois filhos maravilhosos."

Nesse momento, um grupo de cinco idosas invade a sala. São idosas dispostas, ágeis, que preenchem a rotina das semanas com cursos de internet, de celular, na hidroginástica, em aulas oferecidas pela Unati.

"Há algum tempo, a única opção de diversão para eles eram os bailes. E quem não gosta de baile? E quem gosta de conversar? De aprender? Aqui, eles têm a oportunidade de fazer isso", comenta ele, enquanto rebate, no meio da sala, uma peteca que acaba de ser arremessada por uma das idosas.

"Sabe de uma coisa?", ele diz, sorrindo, dividindo-se entre os caminhõezinhos produzidos com latas de Nescau, leite Ninho e Sardinha. "Acho que me tornei mais amável depois que passei a trabalhar com a melhor idade."

Leitor de Tchekhov, Machado de Assis, Schopenhauer e Camus, o amável professor é articulista de mão cheia. Muitos de seus bons artigos foram publicados nas páginas de O Diário – no último, há alguns dias, Raymundo começava o texto discorrendo sobre o mau gosto musical dos jovens e amarrava sua ideia apontando o efeito mais revoltante da falta de bom gosto nos dias de hoje: a vitória de Donald Trump.

Até o momento, porém, ele não cogitou a ideia de reunir os tantos artigos em um único volume. "Acho que faria bem para o ego", diz, rindo. "Uma vez até juntei todos eles, deu um tanto assim, ó", comenta, abrindo os dedos um bom tanto.

 

Família, abandono, literatura, prazer e revolta: há conversas que reviram o fundo da alma. "Você hoje foi meu ouvinte. Muito obrigado por ser meu psicanalista", despede-se, gentilmente, o mestre Raymundo Lima.

http://maringa.odiario.com/maringa/2017/09/felicidade-e-uma-coisa-complicada-avalia-raymundo-lima-professor-da-uem/2416836/